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sábado, 18 de abril de 2009

Coprologia à Parte

[Segue extrato do que escrevi alhures após me censurarem a palavra merda]

Para os que porventura não saibam e nem sequer desconfiem, mas queiram saber e não tenham tanta raiva (ai de mim, erudito de merda!) de quem sabe, minha impublicável palavra procede do latim. Procedência suficientemente atestada em fontes bastante seguras e confiáveis. Era originalmente “merda, merdae”, um bom substantivo feminino de primeira declinação, na língua dos romanos da antiguidade clássica. Chegou-nos pelo acusativo singular “merdam”, o que também aconteceu com a esmagadora maioria dos nossos substantivos provindos do latim. (1)


Natural que “merda, merdae” não fosse, nem sequer no latim vulgar, que dirá no latim clássico, um termo dos mais prestigiosos. Nunca o encontrei nos modelares Cícero ou Virgílio (cujas respectivas "obras", também, não cheguei a ler integralmente, muito menos atrás de “merda, merdae” logo ali, só pra poder agora, a essa altura do campeonato, oferecer-lhes qualquer garantia que seja a esse respeito), mas posso dar-lhes certeza de já ter visto “merda, merdae” em autores de grande credibilidade. Só que isso foi lá naqueles bons(?) tempos de faculdade, tempos em que eu lia latim vorazmente, a ponto de saber conjugar e declinar tudo bem direitinho, com a quela porrada de exceções e tudo, ter um puta dum vocabulário que incluía, por exemplo “matella, matellae” (2), Significa penico, coisa que saber, pode apostar uma boa aposta, não era pra quem lê pouco, não.

Em francês, indiscutivelmente uma das mais antigas e também mais cultas flores do Lácio, além de muito bela, é “merde” que se diz. Trata-se aí de um monossílabo, e este monossílabo muito curiosamente é bom, muito bom francês. Há peculiaridades deveras interessantes e "aos quilos" a comentar sobre o curioso termo francês, esse “merde”. Os franceses (que conforme bem sabemos são ótimos perfumistas há sei lá quantos séculos, que têm uma longa e mundialmente afamada tradição culinária, que praticamente ditaram a moda pro mundo inteiro por muito tempo e que conseqüentemente são com toda a justiça considerados como um povo do mais refinado e extremado bom gosto, a despeito das nada raras exceções de hoje em dia) não poderiam jamais ignorar solene e historicamente palavra tão expressiva e tão útil da língua que deu origem à sua, e por assim dizer “andar” pra ela, como puderam, quiseram e souberam fazer os imemorialmente fleumáticos ingleses.

Nem poderiam concebivelmente os franceses deixar de transformar a quase vulgar e rude “merda, merdae” dos velhos, cultos e grossos romanos em sua simpática, bem dizer prestigiosa e quase bem-cheirosa “merde”, palavra não só perfeitamente aceitável, presente em todos os bons dicionários, logo achadiça também na “obra” dos mais reputados literatos que a França já deu. Como bem se sabe, estes literatos sempre constituíram a principal fonte da maravilhosa lexicografia tradicional francesa.

Além do óbvio sentido etimo-(escato/copro)-lógico, o termo acumulou, com o tempo, diversos outros. Por exemplo, “traîner quelqu’um dans la merde” significa ridicularizar alguém. E quem melhor do que os franceses pra fazer isso? Um ser desprezível qualquer, animado ou não, é “une merde”, ou “de la merde”.

Como exclamação, “merde!” pode sugerir raiva, impaciência, desprezo, assim como uma pá de outras coisas. Trata-se, aqui, de uso bem mais expressivo, bem mais corriqueiro e bem mais aceitável que o que se deu com nosso correspondente uso de "merda", termo ante o qual (até certo ponto compreensivelmente) são muitos, entre nós, os que torcem o nariz.

Crotte” é um dos nem tão poucos sinônimos populares de “merde” em nosso correlato sentido de merda como sinônimo de bosta, caca, cocô, maomé (3)

Mas então, em francês, a palavra “merde” deu foi crias. Adjetivos como “merdeux” (feminino “merdeuse”), “merdant” (feminino “merdante”), “merdique” (adjetivo comum aos dois gêneros); os substantivos “merdier”, “emmerdement”; o verbo “merdoyer” são apenas uns poucos exemplos do que existe de derivados tirados a fórceps dessa minha memória de "merde", só para ilustrar. Tem é bem mais. Atestam todos eles, em seu conjunto, que a palavra “merde” lá na França goza de incontestável prestígio. Tal afortunada prole de derivados não é pra qualquer uma, não. Lá, como bem sabemos, tradicionalmente (inclusive até hoje, acho) se diz “Merde! Merde!” como uma forma de apreciação coletiva em espetáculos públicos, correspondente ao “Bis!, Bis!” que nós lusófonos dizemos em situação idêntica.

As palavras viajaram, pois, desde o velho e defunto latim até suas filhas relativamente jovens e todas ainda vivas através de caminhos incrivelmente complexos, é bem verdade, mas de modo algum caminhos imprevisíveis, aleatórios, por assim dizer. Tais percursos permitiram o estabelecimento de determinadas analogias, conhecidas entre os estudiosos dessas coisas como “leis fonéticas”.

Tentarei dar um exemplo do que seja isso pra meus leitores que, caso não saibam mas queiram saber (e não me detestem muito porque eu saiba), buscando um paralelo bem fácil entre nosso vernáculo e seu irmão gêmeo univitelino, o espanhol.

Muito que bem. O mesmíssimo termo original latino aqui omitido, (primeiro porque completamente desnecessário para os fins nada acadêmicos do presente post experimental, segundo porque o assunto já pode estar meio saco-enchente e cheirando a uma aula de merda (ou a merda, mesmo?) pra alguns dos meus talvez já bocejentos leitores que até aqui tiveram a generosidade de me acompanhar, e “last but not least at all” porque estou improvisando, e posso de repente não me lembrar mais ou inclusive não saber mesmo o “esperma” do termo exato em latim, o que afinal seria um quinguecongueano mico pra minha erudição, ainda que de merda) percorreu aquelas tais trilhas incrivelmente complexas mas repletas de pontos de répérage seguros, e acabou dando, por exemplo, cá no nosso luso vernáculo em “perto”, e lá no espanhol deles deu em “pierto”. O mesmíssimo latim que deu cá pra nós “sempre”, lá pra eles deu “siempre”. O mesmíssimo latim que deu cá pra nós “tempo”, lá pra eles deu “tiempo”. O mesmíssimo latim que deu cá pra nós “vento”, lá pra eles deu “viento”. O mesmíssimo latim que deu cá pra nós “medo”, lá pra eles deu “miedo”. O mesmíssimo latim que deu cá pra nós “certo, certa”, lá pra eles deu “cierto, cierta”. O mesmíssimo latim que deu cá pra nós “aberto, aberta”, lá pra eles deu “abierto, abierta”.

Conclusão (ufa!) de todos esses meus "mesmíssimos", "cás pra nós" e "lás pra eles" de merda, acima: em nosso português (de nada não, só ameaça), geralmente encontramos um “e” tônico aberto ou fechado em diversas situações nas quais paralela, previsível e sistematicamente acharemos um “ie” também tônico, só que invariavelmente fechado em espanhol, vindos por seus respectivos caminhos históricos do mesmíssimo latim original. Coisa dessas tais leis fonéticas. Portanto, o mesmíssimo latim “merdda, merdae”, que cá pra nós acabou dando em “merda”, lá pra eles já deu foi em “mierda”, o que, segundo rigorosamente as mesmas leis fonéticas, vem a dar rigorosamente na mesma merda (ou mierda, ou merde, afinal, que merda de diferença faz isso?).

O italiano então é quem jamais poderia ficar pra trás nessa história, morando geograficamente na mesma casa em forma de bota onde antes morara o seu defunto ancestral imediato. Já pensou? Nem pensar! Eles, é claro, têm lá sua indefectível “merda”, e também “merdoso”, “merrdosamente”, “merdaio” e por aí vai.

O inglês é língua de origem e evolução histórica não-latina, mas cujo léxico contém bem mais latim do que qualquer outra coisa (lexicógrafos do inglês orçam, salvo meu equívoco ou lapso de memória, entre 57% e 64% o total de raízes latinas em seus respectivos lemários). E o vocabulário escatológico/coprológico ali é, “só pra variar”, um dos mais ricos que há. Existem lá pra eles shit, crap, fiddle, dregs, droppings, dung, manure, e por aí vai, só pra citar os poucos exemplos de pronto acudidos, sem forçar muito a merda da minha memória.

Mas para a boa “merda, merdae” dos velhos romanos, que embora com diferenciados graus de reverência todas as línguas neolatinas acolheram, eles torceram mesmo o nariz, tanto assim que em inglês não há, pelo que me consta, nem a forma “merd*” nem coisa alguma de origem latina que o valha.

___________________________

(1) O caso preferido pelo idioma inglês na hora de tomar substantivos do latim para si foi quase invariavelmente o genitivo. Um caso inclusive bem mais conveniente, por apresentar uma regularidade notavelmente maior, inclusive. Mas o inglês não é filho, e o latim não lhe adentrou, apesar da superdose, através do "código genético". A história ali foi outra. É por esta razão, a da regularidade, que é o genitivo que caracteriza as declinações (genitivo em -ae para primeira, genitivo em -i para a segunda declinação, e por aí vai até o fim, ou a quinta, como prefiram). Corresponde o genitivo àquela segunda forma convencionada já faz é séculos para se apresentar os substantivos latinos. Rosa, rosae (primeira declinação); lupus, lupi (segunda declinação); “diabo-a-quatrus”, “diabo-a-quatru” (quarta de-gozação).

(2)(agora não tenho mais certeza se era com dois eles ou com um só. Deixo por enquanto como está, depois confiro, se
a) me lembrar,
b) houver motivo ou
c) houver solicitação)

(3)(com inicial minúscula, pelo amor de Alá, pois essa gíria "maomé" circulou foi assim mesmo aqui no Brasil. Posso provar que sim, se for obrigado a fazê-lo. Alá [e todos os seus legítimos heterônimos, inclusive Tupã, só por garantia] que me livre(m) e guarde(m) de repetir aqui a quase feliniana saga do poeta Salomon Rushdie, com seus Versos Satânicos e “crappy” que quase ninguém leu, parece-me, mas que todo mundo conhece e ainda lembra e muito bem, basicamente por conta de sua sei lá até que ponto justa mas garantidamente fanática condenação à morte, pelo fato de ambos [tanto o poeta quanto seus famosos versos de merda] terem tão gravemente insultado o Islã).

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Palavrões

No finalzinho da década de setenta e da famigerada ditadura militar brasileira, M. Souto Maior saiu com seu Dicionário do Palavrão e Termos Afins, obra ao que me consta sem quaisquer precedentes no país ou mesmo em língua portuguesa.

Li-a ainda fresca. Dei um rápido balanço em meu próprio vocabulário de doestos, palavras de baixo calão, termos considerados chulos, vulgarismos, plebeísmos e tudo mais nessa linha antes da leitura e descobri (boquiaberto) a até então insuspeitada pobreza do meu próprio vocabulário neste campo.

O prefácio de Gilberto Freyre foi o quanto me bastou para dissipar de uma vez por todas qualquer vestígio de suspeita sobre um possível mau gosto ou baixo nível que o título ainda pudesse suscitar.

Nem sei que fim levou meu exemplar daquela primeira edição, com dois, três mil verbetes, salvo engano, mas lembro que foi uma experiência enriquecedora.

Os verbetes nem sempre estavam tão modelarmente redigidos e as definições algumas vezes assomaram-se-me ou vagas demais ou insatisfatórias pelos mais variados motivos. Atribuo estas características técnicas principalmente à falta de apoio em qualquer tradição estabelecida, ao inevitável improviso, neste caso. Jamais à falta de competência lexicográfica do autor, um trabalhador infatigável com respeitável produção intelectual a seu crédito.

A virtude de oferecer uma profusão de abonos em obras e autores da mais variada reputação foi o ponto alto, para mim. Desconhecia completamente vários deles.

As poucas obras congêneres em língua estrangeira que conheço mais aumentam meu convencimento da oportunidade, mesmo da necessidade de mais esforços lexicográficos neste sentido. Os "excluídos", por assim dizer, de uma língua deveriam receber mais atenção da parte dos estudiosos. Não obstante, é sempre o uqe acontece com excluídos, de qualquer forma. Nunca interessam, mesmo.