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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Rua Cordura

Quem conhece o município de Mesquita, Baixada Fluminense, deve saber da existência duma rua chamada Cordura. Acho cordura uma palavra bonita, sonorosa. Seus significados básicos de prudência, disposição amistosa e cordialidade embelezam-na mais ainda. Tipo de palavra que em tudo e por tudo se qualificaria para entrar numa lista lexicoterápica.

Mas a gente de lá realmente não é muito de consultar dicionários. Aparentemente, desconhecem a palavra. Fazem então o que costumam fazer com palavras estranhas, insólitas ou 'difíceis', ainda que muito bonitas. Desconsiderando a inequívoca inicial C nas (poucas) placas [e onde mais o nome apareça "oficialmente" ortografado], como se se tratasse de algum erro, substituem-na automaticamente por um G, e com isso a transformam na palavra usual mais próxima. Não só dizem como também escrevem Gordura, oficiosamente. Li num ônibus: "Passa na Rua Gordura". Com G, mesmo. Rebatizaram a tal rua, na prática.

O fenômeno nada tem de raro nem local. Ao contrário, ocorre no mundo inteiro. Só para dar um exemplo em inglês, "asparagus" (aspargo, pra nós) acabou sendo também conhecido informalmente como "sparrow grass", numa óbvia facilitação a um só tempo prosódica e etimológica. É a chamada etimologia popular, criativa e criadora de um sem número de expressões como "cuspido e escarrado" (de 'esculpido em Carrara'), "mal e porcamente" (de 'mal e parcamente'), e tome de etc.

De início, considera-se qualquer forma assim transformada como incorreta, um desvio da norma, uma corruptela, algo a se evitar. Só que muita vez a nova forma se consagra, ao ponto de ganhar abonação em dicionários. Foi aliás desse jeito que se formaram, a longo prazo, todas as línguas descententes em linha direta do velho e defunto latim, como o francês, o espanhol, o italiano, nosso vernáculo etc.

Quando criança, ouvi muito a forma "bêbado" ser corrigida. O certo à época era "bêbedo". Só que neste caso a forma "correta" com o tempo foi perdendo força e a "errada" se impôs, pelo uso. Caso pra lá de corriqueiro.

Manuel Bandeira comenta o nome do rio Capibaribe. Lembra ele que um velho professor seu fazia uma questão danada da forma correta, Capiberibe, embora o povo por qualquer razão já privilegiasse disparado a outra, com a. Trata-se da mesmíssima oposição bêbado x bêbedo, com o mesmo resultado final, inclusive.

Existem leis fonéticas, muitas delas, por trás dessas transformações por que formas léxicas normalmente passam na evolução histórica de qualquer língua.

Palavras como aipim, engajar, mortadela, mendigo, e muitas outras sofrem nasalização, uma transformação de frequência bem alta (virando, no caso, aimpim, enganjar, mortandela, mendingo, etc.).

Igualmente comum é a transposição de certos encontros consonantais como os de pedra, estupro, vidro, etc. (dando preda, estrupo, vrido, etc.).

É nessa base também que, por exemplo, aviso ‘prévio’ vira aviso ‘breve’ e o ralo ‘sifonado’ vira ralo ‘sanfonado’ juntamente com grande número de casos análogos.

A formação de alguns compostos populares é muito expressiva, geralmente também humorística, como em analfaburro, apertamento, batatalhau, contrachoque, crionças, irmãe, mergulho (não parece um composto, mas o segundo componente é “bagulho”), namorido, paitrocínio, robauto, televizinho(forma dicionarizada), trêbado, tricha, urubusservar e por aí vai.

Há subversões intencionais de expressões com idêntico efeito, como em ‘um abraço e um queijo’, ‘meus parachoques pra você’, ‘suáveis prestações’, etc., etc.

Nada a lamentar, se mencionada rua ficou condenada a uma indesejável obesidade sem causa, só por conta e ao gosto do povo do lugar. Para mim, pena é que, por lá, cordura não tenha “colado”.